Tuesday, August 28, 2007

Rumo a Ítaca

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Porque a vida consiste no caminho
e em como se faz a caminhada
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Salvador Dali
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“O entardecer de Verão tinha começado a estreitar o mundo no seu misterioso abraço. Lá longe, no ocidente, o sol estava a pôr-se e o último resplandecer de todo o também efémero dia detinha-se amorosamente no mar e na areia, no orgulhoso promontório do querido, velho Howth, guardando, como sempre, as águas da baía, sobre as rochas cobertas de algas ao longo da praia de Sandymount e, por último, na tranquila igreja de onde por vezes, sobre a paz, manava a voz das preces àquela que na sua radiância é um farol perpétuo para o atormentado coração do homem, Maria, a estrela do mar.
As três amigas, estavam sentadas nas rochas a gozar o espectáculo da tardinha e o ar que era fresco mas não demasiadamente frio.”
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James Joyce, in Ulisses
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Rubens. Ulisses na Ilha dos Fenícios, 1630-35
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“Durante os vinte anos da sua ausência, os habitantes de Ítaca conservaram muitas recordações de Ulisses mas não sentiam por ele qualquer nostalgia. Enquanto Ulisses sofria de nostalgia e não se recordava de quase nada.
Pode compreender-se esta curiosa contradição se se considerar que a memória, para poder funcionar bem, precisa de um treino incessante: se as recordações não são evocadas, uma vez mais e outra vez ainda, nas conversas entre amigos, vão-se embora.
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Claude Lorrain. O Regresso de Ulisses, 1644
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E, convencidos de que nada a não ser a sua Ítaca lhe interessava (como teriam podido não o pensar se ele percorrera a imensidão dos mares para regressar ali?) seringavam-lhe o que se passara durante a sua ausência, ávidos de responderem a todas as suas perguntas. Nada o aborrecia mais que isso. Só esperava uma coisa; que lhe dissessem enfim: conta! E foi a única palavra que nunca lhe disseram.Durante vinte anos só pensara no seu regresso. Mas uma vez de volta compreendeu, espantado, que a sua vida, a própria essência da vida, o seu centro, o seu tesouro, perdera-o e só poderia reencontrá-lo contando.”
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Milan Kundera, in A Ignorância
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James Draper. Ulisses e as Sereias, 1909
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ÍTACA
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Se um dia partires rumo a Ítaca,
reza para que o caminho seja longo,
cheio de aventura e de conhecimento.
Não temas monstros como os Ciclopes ou o zangado Poseidon:
Nunca os encontrarás no teu caminho
enquanto mantiveres o teu espírito elevado,
enquanto uma rara excitação agitar o teu espírito e o teu corpo.
Nunca encontrarás os Ciclopes ou outros monstros
a não ser que os tragas contigo dentro da tua alma,
a não ser que a tua alma os crie em frente a ti.
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Deseja que o caminho seja bem longo
para que haja muitas manhãs de Verão em que,
com quanto prazer, com tanta alegria,
entres em portos que vês pela primeira vez;
Para que possas parar em postos de comércio fenícios
aí comprar coisas finas, madrepérola, coral e âmbar,
e perfumes sensuais de todos os tipos
tantos quantos puderes encontrar;
e para que possas visitar muitas cidades egípcias
e aprender e continuar sempre a aprender com os seus escolares.
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Tem sempre Ítaca na tua mente.
Chegar lá é o teu destino.
Mas não te apresses na viagem.
Será melhor que ela dure muitos anos
para que sejas velho quando chegares à ilha,
rico com tudo o que encontraste no caminho,
sem esperares que Ítaca te traga riquezas.
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Ítaca deu-te a tua bela viagem.
Sem ela não terias sequer partido.
Não tem mais nada a dar-te.
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E, sábio como te terás tornado,
tão cheio de sabedoria e experiência,
já terás percebido, à chegada, o que significa uma Ítaca.
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Konstantinos Kaváfis
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Ingres. Ulisses,1850
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14 comments:

encanto/elisabete said...

Teresa
Você é fantástica, consegue casr imagem com letras de forma sublime!

beijos da amiga brasileira que lhe quer bem!

o Reverso said...

uma excelente resenha, quase a pedir a Ulisses: conta...

teresamaremar said...

:) obrigada Elisabete e Triliti. É, o contar de Ulisses, um excelente relato de viagem.

Bom fim de semana.

Luís Galego said...

convidar entre outros Joyce e o seu Ulysses é provocar-me....é o meu verdadeiro calcanhar de aquiles...e não quero ir ao pedólogo para tratar o pé, quero sentir essa maravilha...

bettips said...

Do que não sei, aprendo. Do que sei, recordo. Um gosto, conhecer-te! E todos velejamos por Ítaca em sonho: alguém estará tecendo o fio da espera? Abraços

Frioleiras said...

Um abraço... apressado!

F.

Zénite said...

Mescladas as tintas do verbo e da imagem, em perfeita consonância com o teu gesto metódico e harmonioso. Belíssimo o que nos trazes.

Estranha e deliciosa coincidência! Desconhecendo, até ao momento, estes teus "posts", folgo por, também eu, referir a Ilha no meu espaço, embora em termos tão precários.

Abraço, amiga.

Saramar said...

Mergulho nesta beleza imensurável dos seus ensinamentos e permaneço.
Aqui aprendo e me emociono.
Obrigada, sempre.

beijos

Anonymous said...

Viajar é o que importa; o destino, o pretexto adiado. Nunca chegar a Itaca, ela é o fim, o esvaziar das velas, o verde musgo nos cordames e o bolor negro nos interiores das velas. Nada pior que ter saudade da saudade...

Bandida said...

ir por onde a descoberta é mais intensa. na emoção da vida. sempre.


beijo teresamar.


B.
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Pedrita said...

muito lindo, ainda não li ulisses. teresa, achei um email esses dias e relembrei que não conseguia comentar no meu blog. faz um tempinho que me mudei para o blogspot porque reclamações que não conseguiam comentar eram muitas. beijos, pedrita

spring said...

olá teresa maremar!
mais um fabuloso post neste maravilhoso blogue, quando passamos por aqui sentimos o respirar da beleza.
beijinhos
paula e rui lima

APC said...

Caminante, son tus huellas
el camino y nada más;
Caminante, no hay camino,
se hace camino al andar.
Al andar se hace el camino,
y al volver la vista atrás
se ve la senda que nunca
se ha de volver a pisar.
Caminante no hay camino
sino estelas en la mar.

(António Machado)


& "We'll always have Ítaca" :-)

Inteligente, rico e belo!

:-)))

PostScriptum said...

Já parti rumo a Ítaca..
Beijo